O TEXTO ABAIXO TÁ NO SITE DO RICARDO FREIRE
Quem somos? Para onde vamos? E, sobretudo: quantos dias em cada lugar?
E com vocês, existencialismo para turistas. Trazemos em nossa memória genética o instinto nômade do homem pré-histórico, que se deslocava pela Terra em busca de comida (não é por acaso que hoje a França é o país mais visitado do mundo). Em algum momento, a invenção da agricultura sossegou o homem no seu canto, mudando a história da espécie e atrasando em milhares de anos a revolução industrial do turismo. No entanto, fatores novos — como catástrofes naturais, guerras mundiais e cartões de crédito vinculados a programas de milhagem — acabaram provocando novamente grandes deslocamentos de massas por todo o planeta. Trazendo à tona a questão fundamental do homo turisticus: quantos lugares se pode — ou pega bem —conhecer numa mesma viagem? Eu costumo responder a esta questão com outras perguntas igualmente profundas e relevantes para o destino da humanidade:
• Quantas cantoras diferentes podem ser gravadas numa mesma fita cassete?
• Quantos canais de TV é sensato zapear numa mesma noite?
• Quantos pretinhos básicos você deve ter no seu guarda-roupa?
• É possível torcer para um time em cada Estado?
• Preciso ler o jornal de domingo inteiro, ou posso ficar só no esporte e segundo caderno, que tudo bem?
Os turisticamente corretos são unânimes em recomendar: vá para um lugar só, e fique o máximo de tempo que puder. Pare. Veja. Sinta. Absorva. Reflita. Medite. Observe. Aprenda. Critique. Explore. Faça imersão total. Não se contente em ser um turista. "Vivencie" o lugar como um "nativo".
Eu digo: vá a tantos lugares quanto for confortável para você, e fique o tempo que durar o encanto que cada lugar exerça sobre você.
E não se preocupe com essa maluquice de não querer parecer um turista. Você sempre vai parecer um turista. Nem que você se mudasse para o lugar que está conhecendo, ainda assim ia demorar alguns anos para que confundissem você com um nativo. (Imagine um gaúcho que tenha ido morar em Salvador.) Por favor, só não seja um turista desinformado. O turista desinformado, este sim, só faz cair em armadilhas para turistas desinformados, e acaba comprometendo a imagem de todos os viajantes.
Já os turistas bem-informados — e o objetivo deste livro é fazer você se tornar um deles — podem aproveitar as cidades muito melhor do que os habitantes locais. Até porque os turistas bem-informados, ao contrário dos habitantes locais, aproveitam as cidades. (Se você se lembrar da última vez que foi a um restaurante novo ou a uma exposição badalada na cidade onde mora, provavelmente vai ver que foi por causa de alguém que estava visitando você.) Não acredite nos que dizem que você deve viajar e tentar viver como uma pessoa comum. Você não é uma pessoa comum: você é uma pessoa em férias. Você comprou sua alforria temporária e pagou muito caro por ela. Não tenha remorsos de, em Roma, fazer melhor do que os romanos.
(Parênteses: ser um cidadão expatriado gozando temporariamente os benefícios da Lei Áurea não significa deixar de se sujeitar às normas da boa educação. Não embarque sem ler o capítulo 31,Etiqueta não tem preço.)
Cada pessoa tem um timing todo próprio, e à medida que você viaja, vai descobrindo qual é a duração ideal, para você, de uma estada em cada tipo de destino: cidade grande, cidade pequena, cidade onde você domina a língua, cidade onde você não fala patavina, lugar de praia, lugar de montanha, país desenvolvido, país exótico, viajando sozinho, viajando acompanhado, em hotel bacana, em hotel sem graça, na casa de amigos, na casa do amigo de amigos.
30 dias numa cidade grande tipo Nova York, em que você se comunique na língua local e tenha amigos residentes, podem até ser pouco — enquanto 24 horas num lugar estranho e miserável tipo Agra, na Índia, são mais do que suficientes para você ir duas vezes ao Taj Mahal, ao anoitecer e ao amanhecer, ficar em êxtase nas duas visitas mas se entediar completamente no intervalo entre uma e outra.
Viajar é esgotar um assunto que você mesmo se propõe, com o nível de profundidade que você esteja a fim. Não existe certo ou errado: existe divertido ou chato, e sempre dentro de uma perspectiva estritamente pessoal. Tem quem sonhe em conhecer, sala por sala, todos os museus de Paris — como tem também quem dê Paris por conhecida depois de passear de bateau-mouche e tirar uma foto sua com a Torre Eiffel ao fundo.
A propósito, o verbo conhecer é um dos mais elásticos que existem. Num mesmo dia, você pode dizer que conheceu a nova namorada do vizinho no elevador, e ouvir da sua mulher, em tom novelal: "É incrível. Depois de 15 anos você ainda não me conhece."Turisticamente, é a mesma coisa.
Por exemplo. Um gringo pode vir ao Rio de Janeiro, e ainda que passe 15 dias sem sair da cidade, talvez no final não tenha conseguido ir a todos os lugares indicados pelo seu guia — mesmo assim, vai voltar para casa dizendo que conheceu o Rio.
Outro gringo pode vir passar os mesmos 15 dias, mas reservar parte deles para ir de ônibus a Paraty e Petrópolis, depois alugar um carro e esticar até Búzios — e então voltar para casa dizendo que conheceu o Rio e seus arredores.
Outro pode chegar e, em não mais que três dias, subir no Corcovado e no Pão de Açúcar e tomar sol no Posto 9 e ver um show no Canecão e ver um jogo no Maracanã e tomar chá na Confeitaria Colombo e visitar o museu Cármen Miranda — e daí voar para Salvador, Ouro Preto e Manaus. Este vai voltar para a casa dizendo não só que conheceu o Rio, mas que conheceu o Brasil.
Outro ainda pode fazer a mesma coisa, só que em vez de continuar pelo Brasil, partir direto do Rio para Buenos Aires, subir ao Peru para conhecer Machu Picchu, e encerrar seu tour com um pouco de pirâmides maias na Guatemala ou ecoturismo na Costa Rica — este vai dizer que conheceu toda a América do Sul e América Central.
No sentido turístico, todos "conheceram" aquilo que se propuseram "conhecer". No sentido científico (sociológico, antropológico, histórico, geográfico), podem não ter "conhecido" quase nada. No sentido bíblico — bem, aí depende.
As quatro viagens são completamente diferentes, mas todas fazem sentido. É evidente que o guloso que percorrer um continente e meio em duas semanas vai se cansar bem mais do que o comedido que vai ficar 15 dias sem trocar de hotel, mas todos eles — a seu modo, no seu ritmo e segundo as suas prioridades — terão saciado seu tipo particular de fome turística. Lembra do nômade pré-histórico que se deslocava em busca de comida? Pois cada um desses viajantes selecionou os ingredientes, montou seu cardápio e decidiu o ritual da sua refeição.
Monte a sua viagem como quem monta um jantar. E bom appétit.
E com vocês, existencialismo para turistas. Trazemos em nossa memória genética o instinto nômade do homem pré-histórico, que se deslocava pela Terra em busca de comida (não é por acaso que hoje a França é o país mais visitado do mundo). Em algum momento, a invenção da agricultura sossegou o homem no seu canto, mudando a história da espécie e atrasando em milhares de anos a revolução industrial do turismo. No entanto, fatores novos — como catástrofes naturais, guerras mundiais e cartões de crédito vinculados a programas de milhagem — acabaram provocando novamente grandes deslocamentos de massas por todo o planeta. Trazendo à tona a questão fundamental do homo turisticus: quantos lugares se pode — ou pega bem —conhecer numa mesma viagem? Eu costumo responder a esta questão com outras perguntas igualmente profundas e relevantes para o destino da humanidade:
• Quantas cantoras diferentes podem ser gravadas numa mesma fita cassete?
• Quantos canais de TV é sensato zapear numa mesma noite?
• Quantos pretinhos básicos você deve ter no seu guarda-roupa?
• É possível torcer para um time em cada Estado?
• Preciso ler o jornal de domingo inteiro, ou posso ficar só no esporte e segundo caderno, que tudo bem?
Os turisticamente corretos são unânimes em recomendar: vá para um lugar só, e fique o máximo de tempo que puder. Pare. Veja. Sinta. Absorva. Reflita. Medite. Observe. Aprenda. Critique. Explore. Faça imersão total. Não se contente em ser um turista. "Vivencie" o lugar como um "nativo".
Eu digo: vá a tantos lugares quanto for confortável para você, e fique o tempo que durar o encanto que cada lugar exerça sobre você.
E não se preocupe com essa maluquice de não querer parecer um turista. Você sempre vai parecer um turista. Nem que você se mudasse para o lugar que está conhecendo, ainda assim ia demorar alguns anos para que confundissem você com um nativo. (Imagine um gaúcho que tenha ido morar em Salvador.) Por favor, só não seja um turista desinformado. O turista desinformado, este sim, só faz cair em armadilhas para turistas desinformados, e acaba comprometendo a imagem de todos os viajantes.
Já os turistas bem-informados — e o objetivo deste livro é fazer você se tornar um deles — podem aproveitar as cidades muito melhor do que os habitantes locais. Até porque os turistas bem-informados, ao contrário dos habitantes locais, aproveitam as cidades. (Se você se lembrar da última vez que foi a um restaurante novo ou a uma exposição badalada na cidade onde mora, provavelmente vai ver que foi por causa de alguém que estava visitando você.) Não acredite nos que dizem que você deve viajar e tentar viver como uma pessoa comum. Você não é uma pessoa comum: você é uma pessoa em férias. Você comprou sua alforria temporária e pagou muito caro por ela. Não tenha remorsos de, em Roma, fazer melhor do que os romanos.
(Parênteses: ser um cidadão expatriado gozando temporariamente os benefícios da Lei Áurea não significa deixar de se sujeitar às normas da boa educação. Não embarque sem ler o capítulo 31,Etiqueta não tem preço.)
Cada pessoa tem um timing todo próprio, e à medida que você viaja, vai descobrindo qual é a duração ideal, para você, de uma estada em cada tipo de destino: cidade grande, cidade pequena, cidade onde você domina a língua, cidade onde você não fala patavina, lugar de praia, lugar de montanha, país desenvolvido, país exótico, viajando sozinho, viajando acompanhado, em hotel bacana, em hotel sem graça, na casa de amigos, na casa do amigo de amigos.
30 dias numa cidade grande tipo Nova York, em que você se comunique na língua local e tenha amigos residentes, podem até ser pouco — enquanto 24 horas num lugar estranho e miserável tipo Agra, na Índia, são mais do que suficientes para você ir duas vezes ao Taj Mahal, ao anoitecer e ao amanhecer, ficar em êxtase nas duas visitas mas se entediar completamente no intervalo entre uma e outra.
Viajar é esgotar um assunto que você mesmo se propõe, com o nível de profundidade que você esteja a fim. Não existe certo ou errado: existe divertido ou chato, e sempre dentro de uma perspectiva estritamente pessoal. Tem quem sonhe em conhecer, sala por sala, todos os museus de Paris — como tem também quem dê Paris por conhecida depois de passear de bateau-mouche e tirar uma foto sua com a Torre Eiffel ao fundo.
A propósito, o verbo conhecer é um dos mais elásticos que existem. Num mesmo dia, você pode dizer que conheceu a nova namorada do vizinho no elevador, e ouvir da sua mulher, em tom novelal: "É incrível. Depois de 15 anos você ainda não me conhece."Turisticamente, é a mesma coisa.
Por exemplo. Um gringo pode vir ao Rio de Janeiro, e ainda que passe 15 dias sem sair da cidade, talvez no final não tenha conseguido ir a todos os lugares indicados pelo seu guia — mesmo assim, vai voltar para casa dizendo que conheceu o Rio.
Outro gringo pode vir passar os mesmos 15 dias, mas reservar parte deles para ir de ônibus a Paraty e Petrópolis, depois alugar um carro e esticar até Búzios — e então voltar para casa dizendo que conheceu o Rio e seus arredores.
Outro pode chegar e, em não mais que três dias, subir no Corcovado e no Pão de Açúcar e tomar sol no Posto 9 e ver um show no Canecão e ver um jogo no Maracanã e tomar chá na Confeitaria Colombo e visitar o museu Cármen Miranda — e daí voar para Salvador, Ouro Preto e Manaus. Este vai voltar para a casa dizendo não só que conheceu o Rio, mas que conheceu o Brasil.
Outro ainda pode fazer a mesma coisa, só que em vez de continuar pelo Brasil, partir direto do Rio para Buenos Aires, subir ao Peru para conhecer Machu Picchu, e encerrar seu tour com um pouco de pirâmides maias na Guatemala ou ecoturismo na Costa Rica — este vai dizer que conheceu toda a América do Sul e América Central.
No sentido turístico, todos "conheceram" aquilo que se propuseram "conhecer". No sentido científico (sociológico, antropológico, histórico, geográfico), podem não ter "conhecido" quase nada. No sentido bíblico — bem, aí depende.
As quatro viagens são completamente diferentes, mas todas fazem sentido. É evidente que o guloso que percorrer um continente e meio em duas semanas vai se cansar bem mais do que o comedido que vai ficar 15 dias sem trocar de hotel, mas todos eles — a seu modo, no seu ritmo e segundo as suas prioridades — terão saciado seu tipo particular de fome turística. Lembra do nômade pré-histórico que se deslocava em busca de comida? Pois cada um desses viajantes selecionou os ingredientes, montou seu cardápio e decidiu o ritual da sua refeição.
Monte a sua viagem como quem monta um jantar. E bom appétit.